11 janeiro 2010

mudança de estado


Ilustração – James Jean


“Já na viagem de núpcias, quando esta mudança de estado começou a operar-se (e não é muito exacto dizer que começou, é uma mudança violenta e que não deixa respirar), me apercebi de que era muito difícil pensar nela, e totalmente impossível pensar no futuro, que é dos maiores prazeres concebíveis para qualquer pessoa, se não a salvação diária de todos: pensar vagamente, errar com o pensamento posto no que há-de vir ou pode vir, perguntar-se sem demasiada concretização nem interesse pelo que será de nós amanhã mesmo ou dentro de cinco anos, pelo que não prevemos. Já na viagem de núpcias era como se se tivesse perdido e não houvesse futuro abstracto, que é o que interessa porque o presente não pode ser pintado com outras cores ou assimilado. Essa mudança, assim, obriga a que nada continue como até então, e mais ainda se, como costuma acontecer, a mudança for precedida e anunciada por um esforço comum, cuja principal manifestação visível é a artificiosa preparação de uma casa comum, uma casa que não existia para um nem para outro, mas que deve ser inaugurada pelos dois, artificiosamente. Nesse mesmo costume ou prática, muito difundido pelo que eu sei, está a prova de que, na realidade, ao contraírem matrimónio, os dois contraentes estão a exigir-se mútua abolição ou aniquilamento, a abolição daquele que cada um era e de que cada um se enamorou ou talvez visse as vantagens, pois nem sempre há um enamoramento prévio, às vezes existe posteriormente e às vezes não se dá nem depois nem antes. Não pode dar-se. O aniquilamento de cada um, daquele que se conheceu, com quem se conviveu e se amou, arrasta consigo o desaparecimento das suas respectivas casas, ou nele fica simbolizado. De tal maneira que duas pessoas que tinham o costume de ser cada uma por sua conta e de estar cada uma num lugar, e de acordarem sozinhas, encontram-se, de repente, artificialmente unidas no seu sono e no seu despertar, e nos seus passos pelas ruas semivazias numa direcção única ou a subirem juntos no elevador, não mais com um de visita e o outro como anfitrião, não mais com um a ir buscar o outro ou este a descer para ir ao encontro daquele, que a espera no carro ou num táxi, e sim ambos sem escolha, com umas divisões e um elevador e uma porta de entrada que não pertenciam a nenhum deles e agora são dos dois, com uma almofada comum pela qual se verão obrigados a lutar em sonhos e da qual, tal como o doente, acabarão também por ver o mundo.”

Coração Tão Branco | Javier Marías



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