21 setembro 2008

a cidade


foto: iké | Agosto de 2008

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

Ary dos Santos

26 maio 2008

Poesia Matemática



Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a, do ápice à base,
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo rectangular, seios esferóides.
Fez da sua uma vida
paralela à dela.
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?" indagou ele
em ânsia radical
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que, em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
rectas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar,
constituir um lar,
mais do que um lar,
uma perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissectriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fracção,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo o que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.

Millôr Fernandes

Texto tirado daqui

28 março 2008

MACACOS DACTILÓGRAFOS


foto: autor desconhecido


“Imagina o leitor o que fará um macaco ao teclado de um computador? Parece uma ideia ociosa, mas em 1909 um dos grandes matemáticos de sempre, o francês Émile Borel (1871-1956), imaginou um macaco que escrevesse letras ao acaso. Mostrou que, dando-lhe tempo ilimitado, o macaco acabaria por escrever uma das peças de Shakespeare. Borel não falou de um computador, é claro, mas de uma máquina de escrever. E o seu argumento ficou conhecido como a parábola dos macacos dactilógrafos. Carregando teclas de forma puramente aleatória, não só é possível aparecer qualquer sequência de letras como ainda, se o tempo for infinito, qualquer sequência de letras irá necessariamente aparecer.
Matematicamente, este resultado é uma ilustração do chamado lema de Borel-Cantelli. Mas o assunto tinha começado a ser discutido muito antes. Nos tempos de César, o estadista e filósofo Cícero (106-43 a. C.) dissera que uma obra de literatura não pode ser criada atirando letras para o chão. Matematicamente estava errado, como se vê. Mas em termos práticos não disse nenhum disparate. A probabilidade de um macaco que escreve letras ao acaso, independentemente umas das outras, escrever de seguida um simples verso de Os Lusíadas é inferior à de sair cinco vezes seguidas o jackpot a um apostador no Euromilhões.
O mais divertido é que na Universidade de Plymouth, em Inglaterra, houve quem fizesse a experiência e desse uma computador a um grupo de símios. Sabe o que fizeram os macacos no teclado do computador? Defecaram e urinaram. Destruíram a máquina antes de formar uma única palavra.”


texto de NUNO CRATO | PASSEIO ALEATÓRIO PELA CIÊNCIA DO DIA-A-DIA



24 março 2008

preta





fotos: iké | Março de 2008

23 março 2008

Minha herança: uma flor


foto: iké | Março de 2008

Achei você no meu jardim entristecido
Coração partido
Bichinho arredio
Peguei você pra mim
Como a um bandido
Cheio de vícios
E fiz assim, fiz assim:

Reguei com tanta paciência
Podei as dores, as mágoas, doenças
Que nem as folhas secas vão embora
Eu trabalhei

Fiz tudo, todo meu destino
Eu dividi, ensinei de pouquinho
Gostar de si, ter esperança e persistência sempre

A minha herança pra você é uma flor
Um sino, uma canção, um sonho
Nenhuma arma ou uma pedra eu deixarei
A minha herança pra você é o amor
Capaz de fazê-lo tranqüilo, pleno
Reconhecendo no mundo o que há em si

E hoje nos lembramos sem nenhuma tristeza
Dos foras que a vida nos deu
Ela com certeza
Estava juntando você e eu

Achei você no meu jardim

Vanessa da Mata | Sim

20 março 2008




fotos: iké | Março de 2008

méfi, nina ou trufa?



foto: iké | Fevereiro de 2008

08 março 2008

Tenho tanto sentimento


Arthur Rackham


Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.


Fernando Pessoa, 18/09/1933

22 fevereiro 2008

Procura a maravilha

Yoshitaka Amano

Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.

Eugénio de Andrade

18 fevereiro 2008

O tempo e os seus suspiros




Deito-me
para desinflamar
a angústia.

Aos poucos,
meu cansaço
vai perdendo convicção.

A velhice é uma insónia:
deitamo-nos
e quem dorme é a cama.

Mia Couto | idades cidades divindades

11 fevereiro 2008



foto: iké | Outono de 2007

10 fevereiro 2008

08 fevereiro 2008

feroz



foto: iké | Zaragoza | Julho de 2007

selvagem



Yuko Shimizu

06 fevereiro 2008

joaninha voa voa



foto: iké

"Interacções e relações"


"A primeira coisa que, no mundo, o meu olhar alcança, são os olhos dos outros. Nada faria sentido para mim sem esse alcance primordial. Nem eu seria eu, se o outro não existisse. Se o outro não se me contrapusesse, mas também se o outro não estivesse presente em mim. A aventura do mundo faz-se sempre com os outros, com essa comunidade intersubjectiva que é constituída por mim e os meus próximos. Mas são muitas e imprevisíveis as maneiras de os outros se insinuarem em nós. Às vezes são mesmo surpreendentes."

J. L. Pio Abreu | quem nos faz como somos

pintura de Lorenzo Mattotti

05 fevereiro 2008