27 dezembro 2009

apenas se compreende uma fracção do significado




“Anderson Creek, Big Sur
17 de Maio de 1946


Querida Anaïs,

Sim, ao escrever aquele guião, soube enfim que não iria ser necessário enviá-lo, mas tive de o escrever antes que o conseguisse ver claramente. Quando te rendes, o problema deixa de existir. Se tentares resolvê-lo, ou conquistá-lo, só aumentarás a resistência. Agora, estou bastante certo de que, como disse lá, se me tornar realmente naquilo que quero ser, o fardo desaparecerá. O mais difícil de admitir, e conceber com todo o nosso ser, é que sozinhos não controlamos nada. Sermos capazes de nos colocarmos em sintonia, ou no mesmo ritmo, com as forças superiores, que são as que operam verdadeiramente, essa é a tarefa – e a solução, se pudermos falar de “soluções”. O sentimento de culpa é, como ambos concordamos, baseado no conhecimento real de não estarmos a entregar-nos completamente. Disse-o de uma maneira, tu de outra.
Uma coisa que não me preocupa, contudo, é o que as pessoas pensam, como interpretam mal as coisas. Nada há que se possa fazer quanto a isso. Foi muito interessante ler as tuas palavras sobre “apenas se compreende uma fracção do significado”. Mas aí acho que estás parcialmente correcta. O que me surpreende cada vez mais é o quanto as pessoas conseguem de facto compreender quando se abre o jogo completamente, quando nada se omite. [...]
E há mais – é imperativo deixar o outro afundar-se no desespero, ficar irremediavelmente perdido. Só então estará preparado para a palavra certa, só então se poderá servir da verdade. E, nessas circunstâncias, omitir é um crime. Mas embalá-lo é um crime ainda pior. E esse é o cerne do problema, esse ponto. O instinto humano de poupar o outro à agonia (que é a sua forma de redenção, em qualquer sentido da palavra) é um instinto falacioso. E aqui depara-se uma teia de tentações subtis, perversas, perniciosas. Este nível, a que chamamos humano, é regido pelo ego – muitas vezes disfarçado das formas mais incríveis. A tentação de sermos bons, de fazermos o bem, acaba por afligir-nos a todos, de uma forma ou de outra. É o último recurso do ego.
És a única pessoa que conheço que soube usar o silêncio de forma eficaz. Às vezes era devastador, mas não creio que tivesses consciência disso. A verdade é que as pessoas obtinham mais respostas (respostas eficazes) de ti do que alguma vez obtiveram de mim, com os meus gritos e espalhafato, ou com a minha docilidade e persuasão. Tu restituíste-lhes a sua dignidade. Agora, ter plena consciência de o estar a fazer é diferente. Nunca tive a certeza de que a tinhas. Tinha-la, de facto?
No entanto, sei que a agitação e alvoroço que gero, até à distância, vem de mim. Sei-o. [...]

Henry”



Cartas de Amor | Anaïs Nin & Henry Miller




Fotografia da Anaïs Nin obtida aqui
Fotografia do Henry Miller obtida aqui


22 abril 2009

21 abril 2009

quase não somos visíveis no grande rio do tempo


“Imagina que o tempo é como um rio, e que o estamos a sobrevoar num avião. Lá longe, em baixo, consegues avistar as cavernas dos caçadores de mamutes e as estepes onde se cultivaram os primeiros cereais. Aqueles pontos à distância são as pirâmides e a Torre de Babel. Naqueles baixios, os Judeus guardavam rebanhos. Este é o mar que os Fenícios cruzavam nos barcos à vela. Aquilo que parece uma estrela branca a brilhar ali ao fundo, rodeada pelo mar, é na verdade a Acrópole, o símbolo da arte grega. Ali, dos dois lados do mundo estão as grandes florestas sombrias para onde se retiravam os ascetas indianos para meditar e onde Buda teve a experiência da Iluminação. Agora começamos a ver a Grande Muralha da China e, ali ao fundo, as ruínas fumegantes de Cartago. No interior daqueles funis de pedra gigantes os Romanos assistiam ao espectáculo dos Cristãos a serem desfeitos por animais selvagens. Aquelas nuvens escuras do horizonte são as nuvens de tempestade das migrações e foi naquelas florestas, junto ao rio, que os primeiros monges converteram e educaram as tribos germânicas. Deixando aqueles desertos para trás, os Árabes partiram à conquista do mundo, e era aqui que Carlos Magno reinava. Nesta colina, ainda está de pé a fortaleza em que se decidiu finalmente a luta entre o papa e o imperador sobre quem devia ser senhor do mundo. Daqui vêem-se castelos da Idade da Cavalaria e, ainda mais perto, cidades com belas catedrais – ali fica Florença, e ali está a nova Igreja de São Pedro, a causa da ruptura de Lutero com a Igreja. A cidade do México está em chamas e a Armada Invencível está a naufragar nas costas de Inglaterra. Esta nuvem densa de fumo vem de aldeias incendiadas e de fogueiras em que se queimavam as pessoas durante a Guerra dos Trinta Anos. Aquele magnífico palácio no meio de um jardim enorme é o Palácio de Versalhes de Luís XIV. Ali estão os Turcos acampados às portas de Viena, e mais perto ainda estão os castelos simples de Frederico, o Grande, e de Maria Teresa. À distância, ouvem-se os gritos de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, vindos das ruas de Paris, e já se consegue ver Moscovo a arder, e a terra invernosa em que pereceram os soldados do grande exército do Último Conquistador. Ao aproximarmo-nos, conseguimos ver o fumo a sair das chaminés das fábricas e ouvimos o apito dos comboios. O Palácio de Verão de Pequim está em ruínas, e vêem-se navios de guerra a zarpar dos portos japoneses com a bandeira do sol nascente. Aqui, ainda se ouve o ribombar dos canhões da Guerra Mundial. O gás venenoso vagueia sobre a terra. Ali ao fundo, pela cúpula aberta de um observatório, um telescópio gigante dirige o olhar de um astrónomo para galáxias a uma distância inimaginável. Só que agora já só vemos nevoeiro por baixo de nós, e à nossa frente um nevoeiro denso e impenetrável. Só sabemos que o rio continua a correr. Segue sempre em frente, em direcção a um mar desconhecido.
Mas vamos descer até ao rio no nosso avião. De perto, consegue-se ver que é um rio a sério, com ondas como o mar. Está a soprar um vento forte e nas ondas formam-se pequenas cristas de espuma. Olha com atenção para os milhões de bolhas brilhantes que se elevam e depois desaparecem com cada onda. Umas atrás das outras, vêm à superfície novas bolhas e depois acabam por desaparecer com as ondas. Por um breve instante, são elevadas na crista da onda e depois afundam-se e nunca mais são vistas. Nós somos assim. Cada um de nós não é mais do que um pontinho reluzente, uma gotinha brilhante nas ondas do tempo que corre por baixo de nós em direcção a um futuro desconhecido e nebuloso. Quase não somos visíveis no grande rio do tempo. Há gotas novas que estão sempre a vir à superfície. Aquilo a que chamamos destino não é mais do que a nossa luta naquela grande imensidão de gotas entre a subida e a descida de uma onda. Mas devemos aproveitar esse momento. O esforço vale a pena.”

texto de E. H. GOMBRICH | UMA PEQUENA HISTÓRIA DO MUNDO


16 abril 2009

Ó pra ele...



foto: iké | 4 de Abril de 2009

14 abril 2009

13 abril 2009

Alentejo


foto: iké | Abril de 2009

A luz que te ilumina,
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar...


Miguel Torga, 1974