11 junho 2010

Não te analises (...)


Ilustração - Anatoly Fomenko


Não te analises.

Não procures no perfume das flores
a tempestade das raízes.

Nem queiras
desatar o fumo
do carvão das fogueiras.

Ama
com ossos de cinza
e cabelos de chama.

E deixa-te viver
Em rio a correr…


José Gomes Ferreira | Poeta Militante II, 1978

10 abril 2010

Amigo mêêêêê coração?




bilhete que acompanha o prato pintado com duas rosas pelo avô-pincel e que foi oferecido à iké num dia de aniversário

bem sei



[...] Saía de manhã à procura de novas angras e enseadas para nadar. Nunca havia uma alma nas imediações. [...] Ficava deitado ao sol horas a fio, sem fazer nada, sem pensar em nada. Manter a mente vazia é uma proeza, e para mais uma proeza muito saudável. Estar silencioso o dia inteiro, não ver nenhum jornal, não ouvir rádio, não escutar tagarelices, estar perfeita e completamente ocioso, perfeita e completamente indiferente ao destino do mundo é o mais excelente remédio que um homem pode administrar a si mesmo. A cultura livresca esvai-se gradualmente; os problemas fundem-se e dissolvem-se, os laços são suavemente cortados; pensar, quando nos dignamos dar-nos a esse luxo, torna-se muito primitivo; o corpo transforma-se num instrumento novo e maravilhoso; olhamos para plantas, pedras ou peixes com olhos diferentes; perguntamo-nos o que pretendem as pessoas realizar com as suas actividades frenéticas; sabemos que está a travar-se uma guerra, mas não fazemos a mínima ideia porquê nem percebemos porque motivo gostam as pessoas de se matar umas às outras; [...] A ausência de jornais, a ausência de notícias acerca do que os homens estão a fazer em diferentes partes do mundo para tornar a vida mais suportável ou insuportável é a maior das dádivas. Se pudéssemos pura e simplesmente eliminar jornais, estou certo de que isso constituiria um grande avanço. Os jornais engendram mentiras, ódio, ganância, inveja, desconfiança, medo, maldade. Nós não precisamos da verdade como ela nos é servida nos jornais diários. Precisamos de paz, solidão e ociosidade. Se pudéssemos fazer greve e, sinceramente, negar todo e qualquer interesse naquilo que o nosso vizinho está a fazer, poderíamos conseguir novas esperanças. Poderíamos aprender a passar sem telefones, rádios e jornais, sem máquinas de qualquer espécie, sem fábricas, sem minas, sem explosivos, sem navios de guerra, sem políticos, sem advogados, sem produtos enlatados nem engenhocas, até mesmo sem lâminas de barbear, ou celofane, ou cigarros, ou dinheiro. Isto é um sonho irreal, bem sei. As pessoas só fazem greve para obterem melhores condições de trabalho, melhores salários, melhores oportunidades de se tornarem alguma coisa diferente do que são. [...]

Henry Miller | O Colosso de Maroussi



24 janeiro 2010

Dia a dia


Dia
a
dia
noite
a
noite
pedra
a
pedra
palha
a
palha
tronco
a
tronco
cuspo
a
cuspo
gesto
a
gesto
passo
a
passo
flor
a
flor
se faz um ninho
um caminho
um amor

Teresa Rita Lopes | Cicatriz

18 janeiro 2010

A flor




"A flor máis grande do mundo" de Juan Pablo Etcheverry, 2006

11 janeiro 2010

mudança de estado


Ilustração – James Jean


“Já na viagem de núpcias, quando esta mudança de estado começou a operar-se (e não é muito exacto dizer que começou, é uma mudança violenta e que não deixa respirar), me apercebi de que era muito difícil pensar nela, e totalmente impossível pensar no futuro, que é dos maiores prazeres concebíveis para qualquer pessoa, se não a salvação diária de todos: pensar vagamente, errar com o pensamento posto no que há-de vir ou pode vir, perguntar-se sem demasiada concretização nem interesse pelo que será de nós amanhã mesmo ou dentro de cinco anos, pelo que não prevemos. Já na viagem de núpcias era como se se tivesse perdido e não houvesse futuro abstracto, que é o que interessa porque o presente não pode ser pintado com outras cores ou assimilado. Essa mudança, assim, obriga a que nada continue como até então, e mais ainda se, como costuma acontecer, a mudança for precedida e anunciada por um esforço comum, cuja principal manifestação visível é a artificiosa preparação de uma casa comum, uma casa que não existia para um nem para outro, mas que deve ser inaugurada pelos dois, artificiosamente. Nesse mesmo costume ou prática, muito difundido pelo que eu sei, está a prova de que, na realidade, ao contraírem matrimónio, os dois contraentes estão a exigir-se mútua abolição ou aniquilamento, a abolição daquele que cada um era e de que cada um se enamorou ou talvez visse as vantagens, pois nem sempre há um enamoramento prévio, às vezes existe posteriormente e às vezes não se dá nem depois nem antes. Não pode dar-se. O aniquilamento de cada um, daquele que se conheceu, com quem se conviveu e se amou, arrasta consigo o desaparecimento das suas respectivas casas, ou nele fica simbolizado. De tal maneira que duas pessoas que tinham o costume de ser cada uma por sua conta e de estar cada uma num lugar, e de acordarem sozinhas, encontram-se, de repente, artificialmente unidas no seu sono e no seu despertar, e nos seus passos pelas ruas semivazias numa direcção única ou a subirem juntos no elevador, não mais com um de visita e o outro como anfitrião, não mais com um a ir buscar o outro ou este a descer para ir ao encontro daquele, que a espera no carro ou num táxi, e sim ambos sem escolha, com umas divisões e um elevador e uma porta de entrada que não pertenciam a nenhum deles e agora são dos dois, com uma almofada comum pela qual se verão obrigados a lutar em sonhos e da qual, tal como o doente, acabarão também por ver o mundo.”

Coração Tão Branco | Javier Marías