t r e j e i t o s

22 fevereiro 2024

Dilúvio


já vejo o céu em fogo
há quem diga que estou louco
nunca me senti tão só

e a dor que mais me mata
é já não te fazer falta
é fazer falta a ninguém

já nascemos de joelhos
já dobrados pelo meio
ensinados a querer

só aquilo que não temos
só as terras que não vemos
a corrida não tem fim

e a vida fica difícil
o tempo passa tipo míssil 
derramado em suor 

e o que achamos importante
perdemos mais adiante
no fim só restamos nós
a vida fica difícil

já vejo o céu em fogo
cuidado que estou louco
nunca me senti tão só 

seguimos ofendidos
todos sérios e contidos 
inundados em pudor

tenho medo destes muros
pensamentos crus e duros
sempre prontos a julgar

eu já nem sei rir direito
toda a graça é um parapeito
calma, foi em paz que vim

e a vida fica difícil
o tempo passa tipo míssil 
derramado em suor 

e o que achamos importante
perdemos mais adiante
no fim só restamos nós

de onde vem esta saudade
espalhar-se na cidade 
em forma de souvenir 

que venha quem vier por bem
mas não se trate com desdém
quem tratou deste lugar

Letra e Música: A garota não

   

12 outubro 2012

Celina da Piedade - "Disse-te Adeus" (Em Casa 2012)


Disse-te adeus não me lembro
Em que dia de Setembro
Só sei que era madrugada
A rua estava deserta
E até a lua discreta
Fingiu que não deu por nada

Sorrimos à despedida
Como quem sabe que a vida
É nome que a morte tem
Nunca mais nos encontrámos
E nunca mais perguntámos
Um pelo outro a ninguém

Que memória ou que saudade
Contará toda a verdade
Do que não fomos capazes
Por saudade ou por memória
Eu só sei contar a história
Da falta que tu me fazes


29 agosto 2011

23 agosto 2011

Clarice Lispector





Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.

Clarice Lispector | Água viva, 1973


Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector | A paixão segundo G. H., 1964






11 junho 2010

Não te analises (...)


Ilustração - Anatoly Fomenko


Não te analises.

Não procures no perfume das flores
a tempestade das raízes.

Nem queiras
desatar o fumo
do carvão das fogueiras.

Ama
com ossos de cinza
e cabelos de chama.

E deixa-te viver
Em rio a correr…


José Gomes Ferreira | Poeta Militante II, 1978

10 abril 2010

Amigo mêêêêê coração?




bilhete que acompanha o prato pintado com duas rosas pelo avô-pincel e que foi oferecido à iké num dia de aniversário

bem sei



[...] Saía de manhã à procura de novas angras e enseadas para nadar. Nunca havia uma alma nas imediações. [...] Ficava deitado ao sol horas a fio, sem fazer nada, sem pensar em nada. Manter a mente vazia é uma proeza, e para mais uma proeza muito saudável. Estar silencioso o dia inteiro, não ver nenhum jornal, não ouvir rádio, não escutar tagarelices, estar perfeita e completamente ocioso, perfeita e completamente indiferente ao destino do mundo é o mais excelente remédio que um homem pode administrar a si mesmo. A cultura livresca esvai-se gradualmente; os problemas fundem-se e dissolvem-se, os laços são suavemente cortados; pensar, quando nos dignamos dar-nos a esse luxo, torna-se muito primitivo; o corpo transforma-se num instrumento novo e maravilhoso; olhamos para plantas, pedras ou peixes com olhos diferentes; perguntamo-nos o que pretendem as pessoas realizar com as suas actividades frenéticas; sabemos que está a travar-se uma guerra, mas não fazemos a mínima ideia porquê nem percebemos porque motivo gostam as pessoas de se matar umas às outras; [...] A ausência de jornais, a ausência de notícias acerca do que os homens estão a fazer em diferentes partes do mundo para tornar a vida mais suportável ou insuportável é a maior das dádivas. Se pudéssemos pura e simplesmente eliminar jornais, estou certo de que isso constituiria um grande avanço. Os jornais engendram mentiras, ódio, ganância, inveja, desconfiança, medo, maldade. Nós não precisamos da verdade como ela nos é servida nos jornais diários. Precisamos de paz, solidão e ociosidade. Se pudéssemos fazer greve e, sinceramente, negar todo e qualquer interesse naquilo que o nosso vizinho está a fazer, poderíamos conseguir novas esperanças. Poderíamos aprender a passar sem telefones, rádios e jornais, sem máquinas de qualquer espécie, sem fábricas, sem minas, sem explosivos, sem navios de guerra, sem políticos, sem advogados, sem produtos enlatados nem engenhocas, até mesmo sem lâminas de barbear, ou celofane, ou cigarros, ou dinheiro. Isto é um sonho irreal, bem sei. As pessoas só fazem greve para obterem melhores condições de trabalho, melhores salários, melhores oportunidades de se tornarem alguma coisa diferente do que são. [...]

Henry Miller | O Colosso de Maroussi



24 janeiro 2010

Dia a dia


Dia
a
dia
noite
a
noite
pedra
a
pedra
palha
a
palha
tronco
a
tronco
cuspo
a
cuspo
gesto
a
gesto
passo
a
passo
flor
a
flor
se faz um ninho
um caminho
um amor

Teresa Rita Lopes | Cicatriz

18 janeiro 2010

A flor




"A flor máis grande do mundo" de Juan Pablo Etcheverry, 2006

11 janeiro 2010

mudança de estado


Ilustração – James Jean


“Já na viagem de núpcias, quando esta mudança de estado começou a operar-se (e não é muito exacto dizer que começou, é uma mudança violenta e que não deixa respirar), me apercebi de que era muito difícil pensar nela, e totalmente impossível pensar no futuro, que é dos maiores prazeres concebíveis para qualquer pessoa, se não a salvação diária de todos: pensar vagamente, errar com o pensamento posto no que há-de vir ou pode vir, perguntar-se sem demasiada concretização nem interesse pelo que será de nós amanhã mesmo ou dentro de cinco anos, pelo que não prevemos. Já na viagem de núpcias era como se se tivesse perdido e não houvesse futuro abstracto, que é o que interessa porque o presente não pode ser pintado com outras cores ou assimilado. Essa mudança, assim, obriga a que nada continue como até então, e mais ainda se, como costuma acontecer, a mudança for precedida e anunciada por um esforço comum, cuja principal manifestação visível é a artificiosa preparação de uma casa comum, uma casa que não existia para um nem para outro, mas que deve ser inaugurada pelos dois, artificiosamente. Nesse mesmo costume ou prática, muito difundido pelo que eu sei, está a prova de que, na realidade, ao contraírem matrimónio, os dois contraentes estão a exigir-se mútua abolição ou aniquilamento, a abolição daquele que cada um era e de que cada um se enamorou ou talvez visse as vantagens, pois nem sempre há um enamoramento prévio, às vezes existe posteriormente e às vezes não se dá nem depois nem antes. Não pode dar-se. O aniquilamento de cada um, daquele que se conheceu, com quem se conviveu e se amou, arrasta consigo o desaparecimento das suas respectivas casas, ou nele fica simbolizado. De tal maneira que duas pessoas que tinham o costume de ser cada uma por sua conta e de estar cada uma num lugar, e de acordarem sozinhas, encontram-se, de repente, artificialmente unidas no seu sono e no seu despertar, e nos seus passos pelas ruas semivazias numa direcção única ou a subirem juntos no elevador, não mais com um de visita e o outro como anfitrião, não mais com um a ir buscar o outro ou este a descer para ir ao encontro daquele, que a espera no carro ou num táxi, e sim ambos sem escolha, com umas divisões e um elevador e uma porta de entrada que não pertenciam a nenhum deles e agora são dos dois, com uma almofada comum pela qual se verão obrigados a lutar em sonhos e da qual, tal como o doente, acabarão também por ver o mundo.”

Coração Tão Branco | Javier Marías



27 dezembro 2009

apenas se compreende uma fracção do significado




“Anderson Creek, Big Sur
17 de Maio de 1946


Querida Anaïs,

Sim, ao escrever aquele guião, soube enfim que não iria ser necessário enviá-lo, mas tive de o escrever antes que o conseguisse ver claramente. Quando te rendes, o problema deixa de existir. Se tentares resolvê-lo, ou conquistá-lo, só aumentarás a resistência. Agora, estou bastante certo de que, como disse lá, se me tornar realmente naquilo que quero ser, o fardo desaparecerá. O mais difícil de admitir, e conceber com todo o nosso ser, é que sozinhos não controlamos nada. Sermos capazes de nos colocarmos em sintonia, ou no mesmo ritmo, com as forças superiores, que são as que operam verdadeiramente, essa é a tarefa – e a solução, se pudermos falar de “soluções”. O sentimento de culpa é, como ambos concordamos, baseado no conhecimento real de não estarmos a entregar-nos completamente. Disse-o de uma maneira, tu de outra.
Uma coisa que não me preocupa, contudo, é o que as pessoas pensam, como interpretam mal as coisas. Nada há que se possa fazer quanto a isso. Foi muito interessante ler as tuas palavras sobre “apenas se compreende uma fracção do significado”. Mas aí acho que estás parcialmente correcta. O que me surpreende cada vez mais é o quanto as pessoas conseguem de facto compreender quando se abre o jogo completamente, quando nada se omite. [...]
E há mais – é imperativo deixar o outro afundar-se no desespero, ficar irremediavelmente perdido. Só então estará preparado para a palavra certa, só então se poderá servir da verdade. E, nessas circunstâncias, omitir é um crime. Mas embalá-lo é um crime ainda pior. E esse é o cerne do problema, esse ponto. O instinto humano de poupar o outro à agonia (que é a sua forma de redenção, em qualquer sentido da palavra) é um instinto falacioso. E aqui depara-se uma teia de tentações subtis, perversas, perniciosas. Este nível, a que chamamos humano, é regido pelo ego – muitas vezes disfarçado das formas mais incríveis. A tentação de sermos bons, de fazermos o bem, acaba por afligir-nos a todos, de uma forma ou de outra. É o último recurso do ego.
És a única pessoa que conheço que soube usar o silêncio de forma eficaz. Às vezes era devastador, mas não creio que tivesses consciência disso. A verdade é que as pessoas obtinham mais respostas (respostas eficazes) de ti do que alguma vez obtiveram de mim, com os meus gritos e espalhafato, ou com a minha docilidade e persuasão. Tu restituíste-lhes a sua dignidade. Agora, ter plena consciência de o estar a fazer é diferente. Nunca tive a certeza de que a tinhas. Tinha-la, de facto?
No entanto, sei que a agitação e alvoroço que gero, até à distância, vem de mim. Sei-o. [...]

Henry”



Cartas de Amor | Anaïs Nin & Henry Miller




Fotografia da Anaïs Nin obtida aqui
Fotografia do Henry Miller obtida aqui